Quando Alzheimer chegar
REFLEXÕES SOBRE O FILME “VIVER DUAS VEZES”
“Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.
Rei Lear, Shakespeare.
Ficha técnica: Nome original: “Vivir Dos veces”. Direção: Maria Ripoll. Espanha, 2019. Elenco: Oscar Martinez, Inma Cuesta, Mafalda Carbonell, Antonio Valero e Izabel Requena. Fotos: Foto Still do filme.
As décadas
vão passando, e continuamos no aguardo de novas drogas
para
tratamento da causa mais frequente de demência no idoso, a Doença de Alzheimer. Analisando os estudos,
parece que ainda estamos longe,
e a grande missão consiste
em fornecer cuidados
integrais e psicossociais para muito além da medicação. Há um gigantesco desafio: observar, refletir, dar a autonomia possível, proteger sem sufocar
e auxiliar nas melhores escolhas, incluindo sempre a família.
“Viver duas vezes” inicia com as memórias remotas de Emílio, um professor de matemática aposentado, que vive só, por livre escolha, e parece ter maior intimidade com os números do que com seres humanos. Emílio recorda de momentos passados na adolescência ao lado de Margarita. Ela sensível, sonhadora, obrigada socialmente a bordar, quando preferia escrever e cantar. Ele, sério, calado, preferindo o silêncio a canção que Margarita costumava entoar. Entendemos no decorrer da história que essa é uma lembrança recorrente na vida de Emílio, apesar de nunca mais ter encontrado a jovem. Recorrente e doce, a mais doce, na árida vida que Emílio construiu para si.
Emílio tem uma rotina rígida, toma seu café na mesma padaria todo dia. A garçonete conhece suas manias, pedir tomate separado do pão, enquanto faz seus jogos de sudoku, ou quadrado mágico, como prefere chamar. No caminho de casa para a padaria, há uma arte de rua, romântica, que retrata um casal, com bela paisagem colorida ao fundo. Esta imagem se repete em todo o filme e contrasta com a realidade solitária (e voluntária) de Emílio. A garçonete é a primeira pessoa a notar os lapsos de memória, sempre ironicamente negados por Emílio.
Após não conseguir terminar pela primeira vez um quadrado mágico, Emílio procura o serviço de saúde. Ali é aplicado seu primeiro teste cognitivo, semelhante ao Mini Mental. A entrevistadora, uma profissional de saúde, tenta quebrar o gelo ao início do atendimento, mas Emílio segue distante e contrariado. Acha as perguntas do teste óbvias, pois ele é um professor de matemática, descobridor de um número primo. Como não saber quanto é 30 menos 3? Esta cena é interessante, se pensarmos no Método Clínico Centrado na Pessoa. Antes de aplicarmos qualquer protocolo ou teste de triagem, precisamos conhecer o paciente, quem é, o que faz, como se sente, e estabelecer com ele minimamente uma relação de confiança e empatia. Emílio responde ironicamente e com acerto a todas as questões. Percebe-se que a relação médico paciente não se desenvolve durante a entrevista, que termina com Emílio sendo encaminhado a outro médico, para uma conversa sobre o diagnóstico. Não parece um encontro, como deve ser quando temos uma prática centrada na pessoa.
Enquanto o médico discorre longamente sobre a Doença de Alzheimer, suas etapas e sintomas (quarto passo do Método Centrado na Pessoa), Emílio pensa em Margarita. Ela não gostava de matemática, e sim de escrever. Emílio estudava demais, ela gostava de andar pela praia. Ela gostava de cantar, ele de silêncio e de concentração. No entanto ambos concordavam que a matemática é também uma língua. Emílio então pergunta ao médico sobre a solução. E a resposta é incerta, como realmente são imprecisos os resultados dos tratamentos disponíveis. Alguns retardam o processo, mas ele segue inexorável. O médico pede que traga a família, mas Emílio responde que não há ninguém. E se prepara para ir embora.
Para surpresa do médico, ao sair do consultório, a filha de Emílio, Júlia, está na recepção. É representante da indústria farmacêutica em visita ao hospital. Júlia, filha única, fica então sabendo do diagnóstico do pai. Emílio compara o trabalho da filha e a própria medicina a mercadores. Sua solidão parece maior ainda, pois não confia na filha, nem nos médicos, nem na medicina. É bastante hostil com a filha, que organiza a primeira reunião familiar após a notícia. Percebe-se que o impacto do diagnóstico é bem mais negativo do que poderia ser, pela qualidade das relações familiares, e pelas condições de vida de Emílio, com excessiva autonomia e gosto pelo isolamento social. Emílio sai da consulta, como entrou.
Afirmando que “a soma de todas as forças é igual a zero”. A cena do almoço familiar é característica dos nossos tempos. Pai (Felipe) e filha adolescente (Blanca) presos ao celular. Felipe está desempregado, é coach virtual, está absorto nas suas questões. Emílio tenta conversar com a neta, sem sucesso. Júlia convida o pai para que more com a família. O convite é mal recebido. Este é um dos momentos cruciais do cuidado ao idoso que progressivamente vai ficando dependente. A proposta de mudança de casa, de rotina, o abandono de seus pertences, cenários, enfim de sua identidade, é bastante doloroso. Recomenda-se que esta agenda de mudanças, não seja imposta. Que seja dado tempo ao paciente, para que se expresse, seja ouvido realmente. Esta é a primeira premissa do movimento Slow Medicine: tempo para o paciente, não apenas para sua doença.
A adolescente Blanca é dos personagens mais interessantes do filme. Muito inteligente, é portadora de deficiência motora. Observa a família disfuncional, e é tão ácida quanto o avô em seus comentários. Júlia concorda que Emílio permaneça em casa, desde que este aprenda a usar o telefone celular. E designa Blanca, especialista no assunto, para essa missão.
A vivência virtual ofertada pela tecnologia está permeando, e algumas vezes substituindo, as relações familiares. Para o mal (disfunção) com frequência, e para o bem (como fator de interação) as vezes. Neste caso, torna-se fator de união entre avô e neta, após a descoberta, de que a matemática também está ali na rede virtual, os jogos matemáticos também…Blanca diz que “até Deus está ali”. Emílio e Blanca começam a compartilhar interesses, e Blanca o ajuda num sonho que se define: reencontrar Margarita.
O bairro de Emílio começa a se tornar um labirinto temporal e espacial. Ele agora usa o celular, mas ronda pelas ruas sem rumo, até o dia que não mais reconhece o café de todos os dias. O painel de rua com a bela pintura começa e desbotar. A médica repete seus testes, desta vez com a presença de Júlia. É frequente que filhos neguem o progresso da doença, e queiram que os pais, sejam ainda os mesmos, em especial quando são poderosos e autônomos como Emílio. Júlia quer que o pai acerte as questões do teste. E não se conforma com o avanço da confusão mental, repetindo várias vezes para a médica, que o pai é um professor (em seu desejo sempre seria…).
E Emílio percebe então que em breve esquecerá Margarita, sua mais humana recordação. Resolve partir para a cidade onde ela está, acompanhado de Blanca, no momento desesperada por descobrir que o pai tem uma namorada. Blanca constrói um perfil de Emílio nas redes virtuais, e a viagem vai bem, até que Emílio tem um lapso de memória e não reconhece a neta diante de um comerciante. A polícia é chamada, e logo Júlia e Felipe chegam para buscá-los. Pela primeira vez então, Emílio fala do que deseja: procurar o amor de sua vida. Este é o primeiro encontro real da família, cheio de desentendimentos e discussões, mas um encontro.
Júlia compreende a importância da busca do pai, e tem reações infantis, ainda lamentando e cobrando o tempo não passado com o pai na infância. Mas Emílio a convence e sensibiliza, dizendo que vai perder sua melhor lembrança. Júlia resolve então ir até Margarita, como resposta ao último desejo lúcido de seu pai. Esta passagem ilustra uma tarefa importante dos profissionais de saúde diante da família: acolher e trabalhar com sentimentos regressivos dos filhos, mágoas, culpas, e remorsos, para seguir nessa nova etapa.
Preocupados que Emílio esqueça o que deseja dizer a Margarita, a família grava um vídeo, um dos momentos mais belos do filme, sobre o que significa Margarita em sua vida. Eis seu discurso: – “2018. Outono. No fim do mundo. Ela é como o número PI. Gosto muito de matemática porque é lógica pura. Os números são racionais e previsíveis. Mas de repente, no meio dessa harmonia, aparece o número PI. Misterioso, infinito, um número que está vivo. Cria seu próprio caminho sem seguir padrões estabelecidos. Isso faz com que a matemática, seja além da lógica, também seja mágica. Isso era Margarita para mim. A magia.”
O ápice da aventura familiar chega então, com muitos percalços, ao iniciarem a busca por Margarita. Enquanto Júlia e Felipe discutem a relação e resolvem se separar amigavelmente, Emílio afirma que gostaria de ver Margarita apenas para saber se ela pensou nele em todos esses anos. Ao encontrá-la descobre que ela também está na “terra perdida” de Alzheimer. Já não se comunica, mas ainda borda, e em seu bordado, Emílio descobre que os momentos dos dois, foram também para ela infinitos e atemporais.
Voltam então para casa, onde rapidamente piora a desorientação de Emilio. Vaga pelas ruas. Se apaga totalmente a arte de rua, passa a morar com a filha. A neta Blanca o ajuda nos exercícios de memória, usando os elementos de sua vida (música clássica e matemática) como caminhos de recuperação.
Emílio segue seu curso rumo a fase final da doença, deixa de fazer seus quadrados, se torna agressivo e revoltado com a família, principalmente quando pressionado. Finalmente é internado para cuidados. Seu teste mental não produz nenhum resultado cognitivo mais, e ele já aceita ser chamado pelo médico, pelo apelido, enquanto a filha ainda resiste em aceitar a evidente involução neurológica e psíquica.
As últimas cenas do filme retratam as dificuldades da doença, em seu ciclo final: a nutrição é um desafio especial. O controle do comportamento e da agressividade também. Júlia e Blanca entendem que é menos doloroso embarcar nas alucinações de Emílio, do que tentar trazê-lo a realidade. Nesse momento Júlia aceita o inexorável, que seu pai é outro, vive outra vida, antes de partir. Aprende a observar as pistas não verbais sobre o estado de espírito do pai. É hora de oferecer o que a sensibilidade e o amor sinalizam: a música preferida, o lugar amado, os objetos de apego, a rotina, sem discussões ou expectativas da vida lúcida. Emílio e Margarita agora vivem no mesmo asilo, e observam o mar. Não há diálogo racional entre eles, mas as almas parecem felizes e próximas. Há magia, ainda que sem memória.
Segundo a OMS, em 2050 teremos mais de 2 milhões de centenários no mundo. Entre eles, muitos Emílios e Margaritas. Mais ou menos racionais, mais ou menos afetivos, mais ou menos difíceis de lidar. Mas em cada um, como havia no duro Emílio, haverá certamente algo “mágico” a viver, nessa nova vida. A Slow Medicine (praticada no caso pela Atenção Primária, Geriatria e Cuidados Paliativos) e seus fundamentos: tempo, empatia, compartilhamento de decisões, escuta da família, respeito a singularidade de cada pessoa, orientação pelas melhores evidências com respeito às incertezas médicas, evitando intervenções intempestivas e dolorosas, certamente é uma das luzes nessa espécie de labirinto, que tanto tememos, mas que devemos aceitar e viver se for nosso destino. Nesses tempos “modernos” quando queremos opinar e decidir sobre a hora “certa” de nascer, de ter filhos, de se apaixonar e de morrer, talvez seja importante aceitar que NÃO teremos controle sobre essa vida. No dia da chegada de nosso amigo alemão ou de outras demências, certamente a hora não será a certa, não estaremos prontos, nossa família será tão disfuncional quanto a de Emílio. Se tivermos sorte, quem nos rodeia vai se lembrar do nosso “PI”. É do que mais precisaremos.