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A VIDA LONGA DEMAIS E AS UNIDADES DE SOFRIMENTO INTENSIVO

A morte da mãe

Carla Rosane Ouriques Couto

                   Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. Ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade

     A morte da mãe. Como todos os filhos que escrevem textos com títulos como esse, escrevo por pura necessidade. Não necessariamente de solucionar algo. Por busca de conciliação talvez. Ou talvez transformar um pouco que seja a realidade, quem sabe. Ou ainda para dar voz a alguém.

Achei por bem esperar um tempo, digerir e discernir as ideias. Clarear os pensamentos. Foram longas horas de solidão e música. Fui morar no “interior do meu interior para entender” como diz a canção. Então escrevo agora, dois meses após a morte de minha mãe. Ela faleceu aos 95 anos, numa UTI, na qual estava há 5 dias, entubada, com uso apenas de morfina como medicação e sem ter realizado nenhum exame propedêutico no período. O atestado de óbito foi assinado por um médico que nunca vimos. Nem sabemos se ele a viu. Certamente era o plantonista da hora. E que importância tem um atestado a essa altura não é mesmo? Ali há doenças citadas como causas, que ela nunca teve ou não tiveram relação com sua morte. No quinto dia de internação, após uma conversa com o único filho presente (que levou algum tempo para conseguir esse encontro), o médico assistente resolveu retirar o tubo que a mantinha respirando. Assim que retirado o tubo ela faleceu, sozinha. Registrou-se a hora e avisou-se a família. Descrito assim brevemente, não sei que impressão causa. Mas foi assim, e quase ninguém estranhou que assim fosse. Os comentários no velório foram aqueles clássicos: “descansou, viveu até demais, foi bem cuidada”. Ouvi também: “você teve sorte, meu pai da mesma idade, ficou 30 dias numa UTI antes de partir”.      Assisti seu velório e enterro de um país distante, graças a tecnologia, que aproxima tudo e todos. Para lá havia ido alguns dias antes, conhecer minha neta de 2 anos, nascida no início da pandemia. Antes da viagem estive com minha mãe durante alguns dias, internada num hospital pequeno de nossa cidade, onde atua uma equipe que parece entender o que são Cuidados Paliativos. Lá ela entrou e saiu rapidamente da UTI, um lugar que segundo disse o médico que estava de plantão, não é “lugar para gente da idade dela. O lugar dela é em casa”. Gostei disso, quando ele disse apertando o meu ombro com gentileza. E combinamos que em próximas internações ela não iria para UTI nem seria reanimada. O quadro clínico em resumo era composto de infecções urinárias de repetição, demência mista, cardiopatia congestiva leve, imobilização em cadeira e leito por uma artrose de quadril. Seus exames gerais sempre estavam normais. Um corpo “forte” demais para sua idade. Quando se fala nela na família, a primeira menção é “beleza”, ou “gentileza” ou “muito educada, uma lady”. Era sim, mas sobretudo era forte fisicamente e resistente a dor. Mas os delírios foram se repetindo, ao final sem causa aparente ou relação direta com as infecções. Apenas se prolongavam e provocavam rebaixamentos de consciência cada vez mais longos, quando se tornou difícil alimentá-la. Enquanto estive lá foi indicada uma gastrostomia (colocação de um tubo por sonda ao interior do estômago). Indicada, não discutida, embora três de seus cinco filhos sejam médicos (esse foi um fator quase sempre desfavorável). Não discutida por mim porque aquele profissional era o único geriatra disponível na cidade para seu plano de saúde. Meus irmãos, médicos ou não, de pronto aceitaram o procedimento como necessário, e até estranharam porque eu vacilava em assinar o consentimento. Assinei, pois poderia mais uma vez causar conflitos entre médicos assistentes e a família.   

Gustav Klimt –  “Mother and Child” – 1905
https://monalisarte.wordpress.com/

Preciso descrever o procedimento de gastrostomia. Fiquei na sala de espera, sem poder entrar pelos protocolos de pandemia. Vi passar correndo o médico que faria o procedimento. Saiu 10 minutos depois e gritou: “parentes?” Apresentei-me como filha e médica. Ele então falou que tecnicamente tudo havia corrido perfeitamente, mas que eu deveria saber que todo tipo de complicação pode ocorrer. Perguntei seu nome, ele riu, e perguntou: “ué, não sabe?” e saiu andando tão rápido quanto havia cruzado a sala na entrada. De fato, a gastrostomia estava ok, e ela pôde ir para casa, com uma prescrição que absolutamente nada tinha de evidências cientificas que alterasse o seu quadro e sem encaminhamento para atenção domiciliar. Por um excessivo e longo conflito entre os médicos da família já não opinava nas prescrições. Finalmente seu quarto foi transformado para suas necessidades de cuidado. Parti então para minha viagem e ela ficou aos cuidados de cuidadores profissionais que se revezavam a cada 12 horas. São pessoas da melhor qualidade humana e técnica. Tivemos sorte e ela era uma paciente sedutora. Porém os delírios hiporesponsivos se repetiam, até que numa noite ela parou de respirar. Assustados e bastante apegados a ela, os cuidadores chamaram de pronto uma ambulância, embora tivéssemos conversado muito sobre a grande possibilidade de ela parar de respirar. Pedi a eles que nada fizessem nesse caso, apenas ficassem com ela. Mas eles pensaram “não somos da família, nem temos nada escrito sobre não chamar socorro”. Tinham adquirido também um papel importante no cuidado, preenchendo um vazio deixado pela família, quase toda em outros estados do país e com limitações locais por vários fatores singulares do nosso genograma. Foi reanimada em casa e no caminho mais uma vez, dando entrada, por sugestão da equipe de transporte, na emergência do maior hospital da cidade. Ninguém ali se sentiu apto a discordar. O hospital é hoje um grande conglomerado médico, mas se localiza onde funcionava o antigo hospital escola, onde estive nos anos 80, desde o quarto ano de faculdade médica, estagiando. Na verdade, perambulando pelas enfermarias de teto alto, ou sentada na beira dos leitos conservando “demais” com os pacientes. Quarenta anos depois, o mundo é outro. A medicina também. Porém as lembranças dela eram as mesmas. As cobertas ajustadas à cama toda a noite, o casaco de pele por cima nas frias noites do sul, o beijo de boa noite. O jeito que descascava laranjas. Seus passos rápidos no assoalho de madeira pela manhã acordando todos nós. O cheiro de talco da pele clara era o mesmo e a luz azul dos grandes olhos ainda caminhava comigo.

     Pareceu-me que nos comentários do velório e dos amigos havia muita verdade. Viveu muito, foi bem cuidada e descansou. E o que são 5 dias perto de um tempo maior? Duas coisas me angustiaram nesses dias: o que ocorria na UTI e como se sentia o único filho próximo, com decisões e preparativos a serem tomados. Todos os outros chegaram para o enterro e eu cheguei para a missa de sétimo dia. Nossa mãe morreu nos braços frios da medicina intensiva. Um lugar que ninguém, em sã consciência deseja.

     O que eu sentia então? Não era exatamente luto (era hora de partir mesmo), nem exatamente só tristeza, nem exatamente culpa, nem exatamente revolta. Nem sinto hoje nada perto disso. Não me sinto deprimida. Continuo a rir e a gostar da vida. Há sim um certo distanciamento do que é humano, das pessoas em geral. Um cansaço ou estranhamento talvez. Que me remete a sensações da infância. Cresci em meio a quatro meninos, e nem sempre isso foi tranquilo. Lembro do medo de que minha mãe morresse e me deixasse entre eles e meu pai. Hoje são quatro idosos, e a sensação de estranhamento retorna. Para todos tudo foi normal. É assim que o sistema funciona, temos que deixar os médicos trabalharem, eles me disseram. É o que temos. Passei a ouvir todo dia aquela música do Capital Inicial que diz: “nem tudo é como você quer…as coisas são como elas são”.

“O enterro de casagemas” – 1901 – 150×90 c – atualmente no Museu de Arte Moderna de Paris – Pablo Picasso
https://www.rosepainter.es/picasso-biografia/

     A sensação de estranheza é a mesma de quando me contaram que as terras e os animais tinham donos, de quando assisti os primeiros filmes sobre escravidão humana, de quando entendi a diferença social entre homens e mulheres. Que lugar estranho, pensava nos meus 5-6 anos. Por que sinto que há algo profundamente inadequado, quando todos parecem aceitar como normal tudo isso?

     Como me pareceram inúteis os 25 anos pregando em cursos médicos, sobre a necessidade de humanizar a prática médica. Como me pareceram ingênuos os 5 anos escrevendo sistematicamente sobre o envelhecimento e as possibilidades de vida/morte dignas para os idosos, cada vez mais longevos e atacados pela intervenção médica com interesses de mercado. Como me pareceu um ser humano simplesmente “primitivo” esse colega (também idoso), que realizou a gastrostomia. Como me pareceu inacreditável um médico assistente que entrava no quarto de uma idosa demenciada e mal falava com a família. Seria uma ilusão que estamos todos evoluindo?

     Retornei então as palestras na casa espírita, que frequento desde os 35 anos. Lá ouvi mais uma vez, que nada acontece fora dos desígnios de Deus e da espiritualidade. Tudo tem seu tempo sob o céu. Talvez ela tenha partido em casa, na primeira parada cardiorrespiratória e depois tenha assistido seus últimos 5 dias na UTI, esperando que alguém cortasse o tal fio prateado, que prende o espírito a matéria. Será? Há algum sofrimento no coma induzido? É apenas um corpo abandonado pelo espírito que vela ao seu lado?

     Será também que ela não queria partir? Uma vontade férrea de viver? Aos 15 anos, com a morte do pai e a doença mental da mãe, saiu de casa para lecionar numa área rural. Sustentou suas irmãs. Casou-se tardiamente para sua época, criou 5 filhos e uma neta. Diferente de mim, era uma conservadora em suas visões de mundo. Será que não pensaria que tudo correu normalmente? Afinal escolhemos a medicina pela grande admiração que ela tinha pela profissão. Era comovente para mim como aceitava de pronto todas as prescrições e recomendações médicas. Na pequena cidade de Cruz Alta fomos cuidados por médicos de família. Ela sempre dizia: “quando entrava o Doutor Jacob pela porta era como se a luz de Deus estivesse entrando”. Certamente passamos a desejar ser essa “luz”.

     Será que muita gente se sente como eu? Fui ler um pouco mais sobre idosos sem perspectivas futuras que são internados nas UTIs.

     Um dos artigos propõe que Cuidados Paliativos e Medicina Intensiva não são de todo incompatíveis e podem caminhar juntos, aliviando a dor e confortando a família enquanto se restabelecem funções vitais (1). É um texto de 2010, que enfatiza que o intensivista precisa vislumbrar todos os cenários e incluir a família em todas as decisões, diante de admissão de um grande idoso. Penso que estamos muito longe disso ainda. Vale lembrar que a primeira UTI no RJ data de 1967 (1). A idade exerce uma força importante na mortalidade, mas ainda menor do que o grau de disfunção fisiológica decorrente de eventos agudos. É importante discernir se o idoso está morrendo ou se apresenta um quadro agudo reversível. Há um momento de decisão entre acolher ou não um idoso em UTI e de utilizar ou não, todo o recurso disponível ali, e é preciso atentar eticamente quanto aos desejos do paciente e da família. No entanto estudos da época apontam que 80% dos médicos não incluíam em suas prescrições e orientação à equipe, os desejos de não reanimação de pacientes e familiares (1). Ou seja, os quatro princípios sagrados dos Cuidados Paliativos: cuidado, compaixão, empatia e justiça eram pouco praticados. Para boa parte dos serviços de saúde, penso que ainda são belas palavras apenas. Poucas horas depois da internação de minha mãe, meu irmão e os cuidadores informaram à equipe que não a queriam na UTI nem reanimada. Ouviram que esse plano tinha sido feito em outro hospital e que deveriam falar com o médico assistente, ou seja aquele que assinou a internação e depois assinaria o óbito. E ele não estava presente, e era preciso agendar para falar com ele.

“Morte na enfermaria”
Edvard Munch – óleo sobre tela – 134×160 cm – 1893
https://pt.wahooart.com/

     Um estudo realizado em Santa Maria (RS) procurou dar voz aos familiares de idosos internados em UTI (2). O texto contrapõe a necessidade de comunicação com a família com as regras rígidas da UTI (2). “Na relação entre o paciente idoso e o integrante da equipe de saúde, é relevante entender que há envolvimento de sentimentos, desejos e aflições. Além disto, a pessoa idosa tem autonomia e uma história de vida com valores, crenças e experiências que lhe são próprias e, sendo assim, devem ser respeitadas” (3).

     Perguntados sobre quais os significados que dariam para uma UTI, os entrevistados atribuíram termos como “gravidade”, “risco de vida”, “medo”, “lugar horrível”, “final da vida”, “morte”, “lugar sem vida”, “sala de recuperação”, “equipe sempre de prontidão”, “lugar para salvar vidas” e “lugar bem-preparado”. De um lado, há aqueles que manifestam um entendimento negativo, e outros expressam a ideia de que o espaço da UTI é um local de manter a vida e recuperar a saúde. Com relação ao ambiente da UTI, houve predominância, nas falas dos familiares, de que é um local triste, pesado, frio, com muitos aparelhos e de alta tecnologia. O primeiro contato com a pessoa idosa internada em UTI também foi mencionado como um momento de choque ao ver o familiar entubado e sedado. Há menção de que a hospitalização afeta a estrutura familiar, e requer a união da família, incluindo as vezes uma nova ordem em sua dinâmica (2).

      Um dos itens que causa mais angústia citado pelos familiares participantes da pesquisa é a falta de informação sobre o estado de saúde dos idosos hospitalizados. Entende-se como um direito de todos os usuários, a transmissão de informações e o esclarecimento de dúvidas sobre o quadro clínico dos pacientes, na intenção de diminuir o sofrimento e a ansiedade dos pacientes e seus familiares (2).

     Outro estudo afirma que “as mortes nessas unidades são sempre processos complexos, com grande risco de promoção da distanásia, caracterizada pela manutenção de tratamentos invasivos em pacientes sem possibilidade de recuperação, submetendo-os a um processo de morte lenta e sofrida (Santana, Rigueira, & Dutra, 2010 in 2). E ainda que “A morte ou a ameaça da perda tem um impacto perturbador sobre o equilíbrio funcional; a intensidade da reação emocional está relacionada com o nível de integração emocional da família no momento da perda e com a importância funcional do membro perdido. Uma família mais integrada pode reagir emocionalmente de forma mais direta no momento, mas se adaptar rapidamente, uma família menos integrada, pode demonstrar pouca reação imediata, mas responder posteriormente com problemas físicos ou emocionais (Bowen, 1998; Franco, 2008 in 2)”. Entendendo que nem todos os filhos fazem sua catarse como eu, escrevendo, imagino muito sofrimento psíquico por aí. Um sofrimento certamente pouco reconhecido. Afinal, para quê lamentar a morte de alguém que viveu tanto?

     Diz a abordagem familiar sistêmica, que cada grupo e cada familiar reage diferentemente a perda do idoso. Se este era o protetor e sustentáculo da família, há muita dificuldade na reorganização e redistribuição de papéis. Um idoso em estado grave internado pode acionar na família o que chamamos de luto antecipatório, onde há sim sofrimento, mas também um preparo cognitivo e emocional para a morte iminente. Como comumente esses familiares são já idosos também, há perda da saúde, afastamento do cotidiano habitual e outros sintomas psíquicos, a depender muito da relação de cada um com o doente internado. Já ouvi pacientes lamentando a morte dos pais ocorrida há muitas décadas, como se tivesse ocorrido há poucos dias. Cada um atravessa seu deserto.

     Durante a internação a comunicação efetiva e humana com o pessoal da UTI faz a diferença. A espera da visita, esse tempo mínimo de contato, é aguardada com ansiedade, e quase sempre frustrada ao final. São poucas as respostas. Os protocolos rígidos são bastante citados pelos familiares. Um dos familiares lembra que “a vida é maleável, falta sabedoria, jogo de cintura, falta preparo. Parece que estão fazendo um favor. O CTI se apodera do paciente e o paciente fica sendo propriedade deles, você não pode chegar perto. Não existe respeito com o outro lado da porta do CTI” (3 p 1292). Comunicações truncadas, incompletas ou frias, podem potencializar os conflitos que toda a família possui, em contraponto a necessária união entre os membros para os momentos de decisão.

     Busquei um pouquinho dos números, tão importantes nos sistemas de saúde. Quase 70% de idosos internados em UTI não sobrevivem. Eles respondem por cerca de 50% das internações e 60% de todos os dias de UTI. Os não sobreviventes são os mais velhos. A idade é um fator fortemente associado ao óbito, mas sua relação pode ser confundida com a fisiopatologia do grande idoso, suas reservas funcionais e comorbidades. Seremos mais de 2 bilhões de idosos no mundo em 2050, 64 milhões no Brasil – quase 30% da população – que demandarão 22,4% do PIB brasileiro. Destes idosos quase 7% terão mais de 80 anos (4). Um artigo de revisão de 2017 informa que os idosos consomem cerca de 60 % dos recursos hospitalares, e há nas UTIs uma mortalidade de 60% nesse grupo, comparativa a 25% dos adultos. As complicações mais frequentes são infecções urinárias, pneumonia e bacteremia por cateter venoso central, além de outros eventos adversos variados, como os resultantes de sondagens e quedas (5).

Edvard Munch, “La niña enferma” – 1907 
https://revistacontemporartes.com.br

É importante perguntar também: como decidem os médicos diante de um paciente idoso? Quem vai ou não para a UTI? Estudos apontam que não é hábito o questionamento se determinado procedimento pode trazer melhora da qualidade de vida e ser benéfico ao idoso na preservação de sua autonomia e independência. Há uma tentativa de se indicarem procedimentos e tratamentos considerando a longevidade. Apesar de há décadas existirem critérios para avaliar mortalidade de admitidos em UTIS, tais como APACHE II, SOFA e MODS, além de indicação clínica ou cirúrgica eletiva e de urgência. Destes instrumentos, o SOFA demonstra ser o único escore de gravidade capaz de determinar maior chance de mortalidade em pacientes com 80 anos ou mais, com odds ratio de 1,240 (7).

     Estima-se que 18% dos idosos admitidos em UTI tem mais de 80 anos (exceção durante a pandemia, quando disparou essa proporção). Resultados de estudos sugerem que pacientes muito idosos admitidos em UTI, por indicação clínica e cirurgias não planejadas, têm resultados ruins quando comparados aos pacientes admitidos devido a procedimentos eletivos (7). O que se poderia dizer daqueles que na verdade não têm nenhuma indicação de tratamento em UTIs?

     Por fim, o Instituto Brasileiro de Segurança do Paciente publicou em 2018 que os critérios médicos para admissão nas UTIs não possuem consenso e são basicamente subjetivos (8).

     Minha dor ou o que for que sinto, que chamo de estranhamento, é também subjetiva. De explicação complexa. Como a de todos os outros filhos idosos do lá de cá da porta da UTI. Há em todos certamente o desejo de que não exista sofrimento desnecessário a essa altura da vida. O desejo de estar perto de seu familiar. O desejo comum a toda a humanidade de partir em casa, na sua velha e confortável cama, de mãos dadas com alguém significativo.

     Uma das piadas em minha família era de que nossa Diva só iria partir quando a rainha Elizabeth partisse. Afinal, nasceram no mesmo ano, eram duras por dentro e altivas por fora. Partiram com diferença de dias. Uma outra diferença é que o atestado de óbito da rainha indicou como causa morte a velhice. Simples assim. Velhice foi também a causa morte de nossa mãe.  Apenas esteve presa por procedimentos e decisões que resumem o conceito de distanásia: tratamento inútil ou atitude médica, que visando salvar a vida do paciente terminal o submete a grande sofrimento.

     A ortotanásia: morte natural e pacífica é ainda uma utopia para a maioria de nós. Tenho consciência de que as condições da morte de minha mãe são uma soma de questões universais, sociais, coletivas, familiares e pessoais. Penso que todas são. A presença da família poderia ter feito alguma diferença do lado de cá da porta, ainda que para quase toda a família fique a ideia de que foram cinco dias inevitáveis. É bom que se pense e discuta sobre isso. Para tanto existem espaços e movimentos como Slow Medicine.  Além da sensação de ausência ou estranheza que segue comigo, talvez para me ensinar algo novo sobre a vida, fica o desejo de que um dia nossas palavras, argumentos e todo o conhecimento da medicina paliativa passem do encantamento a realidade. E que a vida possa se fazer livremente, do nascimento ao fim. Que ninguém chegue antes da hora nem se atrase para pegar o último trem. E que na chegada e no embarque exista a presença de alguém que dê sentido a essa viagem. Essa agenda precisa sair das mãos do histórico poder médico. E nenhum poder é perdido sem um processo doloroso.

Detenham-se os relógios, cale o telefone, jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,              
 façam silêncio os pianos e o tambor sancione o féretro que sai com seu cortejo atrás.                       Apaguem cada estrela, joguem o sol fora, ponham de lado a lua – nada disso agrada, tirem o mar daqui, mandem o bosque embora, porque tudo só pode agora dar em nada.

W.H. Auden. Funeral Blues.

Referências:

1.Fonseca AC, Fonseca MGM. Cuidados Paliativos para Idosos na unidade de terapia intensiva: realidade factível. Scientia Medica (Porto Alegre) 2010. Vol 20 n 4, p 301-309.

2.Leite MT et al.  A hospitalização em Unidade de Terapia Intensiva na voz de idosos e familiares. Estudos Interdisciplinares sobre envelhecimento. Porto Alegre. Vol 20 n 2, p 535-549. 2015

3. Furuya RK et al. A integralidade e suas interfaces no cuidado ao idoso em unidade de terapia intensiva. Revista Enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n.1, p. 158-162, jan./mar. 2011.

4. Monteiro MC et al. A morte em Cena na UTI: A família diante da terminalidade. ISSN 1413-389X Temas em Psicologia – Setembro, 2017, Vol 25, n 3, 1285-1299 DOI: 10.9788/TP2017.3-17Pt.

5. Alves GC et al. Fatores de risco para óbito em pacientes idosos gravemente enfermos. Revista Brasileira de Terapia Intensiva. 2010. 22(2)138-143.

6. Silva IRN et al.  Complicações em idosos internados em Unidade de Terapia Intensiva no Brasil: revisão sistemática. Congresso Internacional Envelhecimento Humano.2017

7. Santos HS et al. Indicações de Internação e sua relação com mortalidade do paciente muito idoso em UTI. Geriatr Gerontol Aging, Vol 10, n 3, p 140-5

8. Instituto Brasileiro de Segurança do paciente. IBSP. 17 de outubro de 2018. Critérios para admissão na UTI: falta consenso entre os médicos.

 9.Coradazzi AL. A UTI dos idosos. https://nofinaldocorredor.com/2016/12/11/a-uti-dos-idosos/

Músicas: “Onde Deus possa me ouvir”, de Vander Lee. “Não olhe pra trás” de Arnaldo Lima e Fernando Ouro Preto.

CARLA ROSANE OURIQUES COUTO: médica pela UFSM. Especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de Unidades Básicas de Saúde, Educação Médica e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Atrás da porta da UTI, apenas uma filha.

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