
As crianças pedem salvação: por uma Pediatria sem pressa

Carla Rosane Ouriques Couto
Este não é um artigo científico. Não é baseado em evidências, estatísticas ou estudos randomizados. São considerações de alguém que por 40 anos praticou a Pediatria, a Medicina de Família e Comunidade, a gestão de sistemas de saúde, a educação médica, e não menos importante, exerceu e exerce as funções de mãe e avó. Observações empíricas? Talvez. Porém com facilidade encontraremos estudos aceitos pela ciência sobre essa questão, que assombra famílias e profissionais de saúde: o que está acontecendo na saúde da criança brasileira? O que chamamos de “Saúde da Criança”, desde a implantação do PAISC (Programa de Assistência Integral a Saúde da Criança) em 1984, atravessando o movimento Pastoral da Criança, que salvou milhares de vidas da desnutrição, infecções respiratórias e diarreias de repetição, até a chegada das equipes de Saúde da Família? A demanda de atenção à saúde hoje é diferente em quais aspectos? Como nascem e vivem as crianças hoje?
Nascer se tornou um acontecimento complexo. As gestantes hoje têm mais idade, e com frequência problemas crônicos: Hipertensão Arterial Sistêmica, Diabetes, Dislipidemias, obesidade ou sintomas de sofrimento psíquico relacionados ao trabalho ou a pressão da vida dita “moderna”. As mulheres se encontram diante de decisões difíceis: construir uma família ou não? Ter filhos ou não? Ter um único filho? No máximo dois? Há 45/50 anos ouvíamos do professor de pré-natal no curso médico: “é tudo muito tranquilo, os procedimentos estão padronizados, a maioria das gestantes é de baixo-risco”. Esse baixo risco hoje é raro, e os obstetras têm diante de si uma mãe e um bebê que já convivem com doenças crônicas ou problemas sociais graves, antigos e atuais.
Nascidos de uma mãe mais tardia (embora a gestação na adolescência ainda seja prevalente no Brasil), que enfrenta questões de sobrevivência digna na população mais pobre, ou de mães de alta escolaridade e produção no trabalho, os bebês podem ter experiências diversas entre dois extremos: não ter nenhuma atenção ao pré-natal, ou serem submetidos a uma bateria extensa de exames preventivos. Afinal, se queremos poucos filhos, temos que ter garantias de saúde e maior prevenção a algo que “saia errado”. As hipóteses diagnósticas feitas na gestação, via exames exaustivos, nem sempre se concretizam após o parto. Mas fica a impressão de que “o melhor foi feito”. Nesse caminho fortemente “preventivo” ou nada preventivo, muitos bebês nascem antes da natureza dar sinal, e são por isso submetidos a novos cuidados, em geral hospitalares. São como diria Marco Bobbio (1): “bebês imaginados”, que se distanciam do sonho materno de boa parte dessa geração: ter filhos da forma mais natural. Para ter um bebê de forma natural, é preciso enfrentar o sistema e a prática obstétrica tradicional.
Tendo conseguido nascer, e sobreviver ao primeiro ano e seus outros vários diagnósticos: refluxos, intolerâncias e alergias alimentares variadas, distúrbios do sono, distúrbios osteomusculares que demandam até osteopatas, alterações nos saltos de desenvolvimento (que parecem ser cada vez mais próximos), nossas crianças precisam ser cuidadas em creches e escolinhas, para que os pais possam produzir, afinal quem não produz, não consome e está fora do sistema.
Nos grupos de “zap” da creche ou da escolinha, mães preocupadas comentam quais são as epidemias da semana: bronquiolites, influenza, escarlatina, covid, síndrome “mão pé boca”, coqueluche, sarampo, varicela; com detalhes bastante científicos, trocando ideias sobre como isolar e proteger as crianças, vigiando a escola e recomendando profissionais especializados.
Essas semanas parecem não ter fim. As estações do ano não são mais as mesmas, afetando o sistema respiratório das crianças. Avós sentem saudades do tempo em que as notícias da escola se referiam a piolhos e resfriados comuns. São avós mais silenciosas: os filhos estudam tudo na web, seguem os melhores influencers e vão decidir pelo melhor. A rede de apoio familiar também é escassa, pela dispersão geográfica.
A pediatria, especialidade de grande procura pelos estudantes nas décadas de 60 a 90, caiu em desprestígio na virada do século, pela baixa natalidade, melhora nas condições de vida geral, por um padrão de morbidade menos infeccioso (vacinas salvam), e pelas especificidades de um sistema de saúde que remunera procedimentos hospitalares e cirúrgicos. A consulta clínica, pilar de uma pediatria excelente, estacionou na tabela de procedimentos do SUS e de planos rivados. Em 2024, as mães procuram nas redes sociais profissionais pediatras que possam dar conta dos mistérios do adoecimento infantil: será Depressão Infantil, Síndrome do Pânico, Fobia de insetos? O absenteísmo escolar sobe em vertigem, em especial após a pandemia de Covid 19. Voltam a se erguer as clínicas e
hospitais pediátricos, desativados no início do século: temos menos crianças, mas elas estão “mais” doentes.
Em todas as salas de aula de creches e escolas de ensino fundamental, há um segmento crescente de crianças diagnosticadas com transtornos T”: Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Transtorno Opositivo Desafiador (TOD). Todos eles têm causas obscuras, nenhum tratamento específico. Ao seu redor há todo um elenco de auxiliares de ensino, equipes médicas e interdisciplinares e claro, medicamentos de “última geração”. Mães se queixam: “ele não dorme, ele não presta atenção, ele não fica sentado, ele não obedece, a escola manda recados diariamente e quer uma avaliação médica”. E no catálogo de transtornos podemos encontrar diagnósticos para bebês de poucos meses. A idade para rotular crianças com transtornos mentais diminui a cada edição do DSM V TR (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da American Psychiatric Association) na qual todos nós, adultos e crianças podemos encontrar um “T” para chamar de nosso. Os “meninos maluquinhos” de Ziraldo (2) estão aí, crianças cheias de vida, energia e curiosidade, expostas a telas e estímulos de imagens, sons e cores desde o nascimento. Encostar um dedinho na tela é mais frequente do que tocar uma mão humana, e nenhum menino maluquinho escapa de ser um “neuro atípico”. A Turma da Mônica (3) parou de brincar, porque Mônica faz terapia para TOD, Cebolinha precisa ir à
fonoterapia, Cascão tem fobia e precisa tratamento, Magali já está indo a nutricionista depois de passar pelo gastropediatra.
Em torno dessas crianças e suas famílias, há todo um movimento previdenciário, de
militâncias e legislações. Mães que lideram famílias de baixa renda, talvez respirem umpouco mais, se tiverem um filho classificável como candidato a receber benefícios estatais e um pouco mais de atenção. E essa criança, talvez portadora de um ou dois critérios de “transtorno”, se desenvolve de acordo com o rol de “sua” patologia. O sujeito singular desaparece, e para se apresentar dirá: “eu sou João e sou autista”. Com sorte chegará a uma vida independente e ouvirá que é um caso de “superação”. Em sua peregrinação por serviços de saúde, talvez não encontre ninguém que descubra qual é seu potencial humano, e quem é João, atrás da tarja. Nessa jornada, paradoxalmente, ouvirá e verá nas redes sociais apelos por beleza, perfeição, performance e produção. O que resta? Estão aí as estatísticas de sofrimento mental e suicídio na infância e adolescência. Bem, as crianças estão mais doentes ou o mundo é que está mais doente? O que podemos fazer? Ter menos pressa talvez? Tomar mais tempo para observar a criança que cuidamos na família ou na profissão. Oferecer mais contato e menos estímulos não humanos. Permitir que seus corpos falem mais, a cada sintoma, que traduz algo único. Ouvir mais. Estar ao ar livre.
Tocar mais, ainda que tendam ao isolamento. Ponderar sobre ofertas de medicações e terapias. Considerar mais sinais de felicidade e subjetividade do que de neuro atipias. Tudo isso é Slow Medicine, e pode ser divergente da ordem mundial. É preciso transgredir para salvar.
Por fim, toda conversa de avó tem que terminar com um “causo”. Pelos idos de 1990, atendia num ambulatório de pediatria chamado “Vila Esperança”, numa pequena cidade do Mato Grosso do Sul. A clientela era basicamente de mães pobres de origem paraguaia. Um dia uma mãe trouxe seu filho de cerca de 6 anos para a consulta. Perguntei sobre o problema do menino e ela respondeu: “não é doença não…o pai dele morreu e ele pediu que o
trouxesse aqui para a senhora, porque assim pode se sentir melhor”. Não havendo mais nada a dizer, sentei o menino no colo e o abracei por alguns minutos. Partiram sem prescrição.
Guardo os semblantes de mãe e filho na memória como significantes de uma prática pediátrica honesta, centrada antes de tudo na criança, e em seguida na escuta dos pais e na consideração do contexto comunitário e social. Salvar essa geração dos efeitos da sociedade danosa que construímos é tarefa nossa, como profissionais de saúde. A Slow Pediatria certamente é uma boa bússola filosófica e médica.
Citações:
1- Marco Bobbio: médico cardiologista, autor de “O Doente Imaginado” e “Medicina Demais”, um dos líderes da Slow Medicine italiana.
2- Ziraldo Alves Pinto (1932/2024): escritor, pintor, cronista. jornalista e cartunista brasileiro, criador do personagem Menino Maluquinho.
3- Turma da Mônica: série de histórias em quadrinhos, criada por Maurício de Sousa em 1959.

Dra. Carla Rosane Ouriques Couto
É médica pela UFSM. Especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gerenciamento de Unidades Básicas de Saúde, Educação Médica e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Psicanalista. Educadora da UNASUS. Várias vezes salva por pequenos pacientes e pelos netos.
Colaboradora assídua do site Slow Medicine Brasil, tem no cinema um de seus focos de interesse, sendo responsável pela dicas de cinema na página no Facebook e também no site.