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“O último azul: o desejo não tem idade”

“O último azul: o desejo não tem idade”

Ficha Técnica:
Título original: O Último Azul.
Direção: Gabriel Mascaro.
Protagonistas: Denise Weinberg, Miriam Socarras e Rodrigo Santoro.

Vera Anita Bifulco
Carla Rosane Ouriques Couto
O cenário é uma pequena cidade amazônica, água e azul por todo lado. A personagem é absolutamente comum: Tereza, com 77 anos. Tereza é absorvida por uma rotina ordinária, trabalhando numa espécie de frigorífico de jacarés. Vive sozinha. Em outra localidade vive a única filha e um neto. Nosso olhar não está habituado a ver beleza nessa rotina, mas aparentemente Tereza vê beleza em seu dia a dia. E vê também autonomia e alguma liberdade. A liberdade possível pois os tempos são mais ou menos distopicos: um sistema político que oprime, explora e exclui os não produtivos. Embora vivamos na sociedade do cansaço e da exaustão laboral, Tereza não parecia cansada de viver; pelo contrário.
De muitas formas vivemos essa distopia, desde que o Brasil é Brasil. O tema da exclusão do velho só ganhou espaço porque há muitas questões prementes que emergiram com o avanço do envelhecimento da população. Porém os mecanismos de exclusão permanecem, não tão ostensivos quanto os do filme.
Na história de Tereza o “sistema” já resolveu o que fazer com os velhos: recolhê-los e confiná-los num local desconhecido, de onde ninguém volta. Talvez o mais simbólico da narrativa seja o veículo “cata-velhos”, uma espécie de carroça que recolhe os mais rebeldes.
Tereza é comunicada que chegou sua hora, que ela imaginava chegar somente aos 80 anos. Mas após os 75 anos o cidadão não é mais cidadão. Sua casa é “decorada” sem ela permitir. Recebe ainda uma condecoração por “serviços prestados”, perde sua cidadania, e passa a ser tutelada pela filha, até ser enviada a última morada.
Nesse momento percebemos então que Tereza não é tão comum assim. Ela desafia o sistema, foge, encontra parcerias boas e nem tão boas. O primeiro parceiro é o personagem de Rodrigo Santoro, Cadu, alguém que vive também entre as margens do mundo que escolheu, à margem da “sociedade organizada”. Talvez a “terceira margem do rio” de Guimarães Rosa. Nesse encontro ela toma contato com o caramujo azul, cuja secreção pingada nos olhos possibilita ver o futuro. Cadu enxerga o futuro sem seu grande amor, e prefere rodar entre as margens de seu mundo. Tereza segue em frente. Tereza sempre segue em frente, tentando escapar das margens oficiais dos rios.
Quem sai pelo mundo está arriscado a encontrar gente mais valente. Tereza encontra Roberta, uma idosa que também navega em seu próprio rio, com suas próprias regras. Ocorre que sua atividade é benéfica ao sistema: ela vende bíblias digitais. Uma das muitas metáforas do filme que aborda questões políticas, laborais e religiosas de forma muito inteligente. O que surpreende então é ver que Tereza é ainda mais audaciosa que Roberta, arriscando tudo por um momento que a suspende no ar: assistir a batalha entre dois lindos peixes. A vida pulsa no corpo de Tereza, ela banca seu desejo.
Somos tomados de estranheza quandouma pessoa idosa arrisca tudo que possui, em nome de seu desejo. Recomendamos cautela aos idosos, desde o monitoramento de sua saúde, passando pela visita domiciliar para prevenção de risco de quedas ao aconselhamento comportamental (os idosos são vistos como teimosos e desobedientes). Assistir a dança/luta dos peixes (Eros x Tanatos) é o que move Teresa, e ela se move, sem muito cálculo. Diz a psicanálise que a morte do desejo é predomínio da pulsão de morte, é o desaparecimento do sujeito. Tereza é pura pulsão de vida. Em contraste com as idosas de nossa sociedade: matriarcas que geralmente “seguram as pontas” de muitas gerações, plenas de bom senso e grandes virtudes notadamente pouco prazerosas, especialmente se forem mães.
Em 1º de outubro comemora-se o Dia Nacional e Internacional da Pessoa Idosa, instituído por meio de resolução da Organização das nações Unidas (ONU). Coincidentemente vemos o lançamento dessa belíssima obra nacional, ganhadora da Palma de Prata no Festival de Berlim, O Último Azul, ao retratar uma distopia ao fim se revela uma utopia: pensar o corpo feminino velho como pulsante, aberto ao surpreendente, ao desconhecido, ao novo. Uma jornada permitida somente ao jovem. Esquecemos que o sujeito desejante é atemporal. O sujeito de quem cuidamos, as vezes precisa ser lembrado disso.
E aqui estamos usando a palavra “velho” e não idoso. Há uma dimensão poética na palavra velho que jamais será substituída. Velho é atemporal. Tereza assume o controle de sua existência, desafia normas familiares, sociais e políticas. E ainda mais, aproveita-se de normas sociais pouco éticas para começar a viajar na sua terceira margem do rio: mostra-se uma boa vendedora de ilusões.
Envelhecer não é um ponto de chegada, é o caminho que acontece a todos, todos os dias com cada um de nós. A vida envelhece conforme passa. O caminho por certo será diferente para cada um. Para alguns a velhice pode abrir espaço para novas escolhas, aprendizados e relações. Para outros, será o enfrentamento de um passado marcado por desigualdades, discriminações e vulnerabilidades que se acumulam no corpo e na memória. A pobreza e a exclusão social também apagam o sujeito do desejo.
O envelhecimento não é apenas individual, mas social, ele se releva em como tratamos as diferenças e como distribuímos ou não as oportunidades. O que a maioria dos homens busca não é a vida eterna, mas a juventude eterna; uma vida com seus prazeres, força, beleza, e não a velhice, com suas perdas, limitações, diferentes estéticas e dores. Por outro lado, a impossibilidade de morrer também assusta. Uma vida “infinita” não teria os apelos necessários para a concretização de metas, sonhos e realizações. As pulsões de vida e morte seguem emaranhadas em nós, notadamente no inconsciente, responsável por muitas de nossas escolhas.
Qual seria o significado do caramujo azul? Para nós profissionais da Slow Medicine, que temos como símbolo um caramujo, ele fala do tempo, dimensão primordial para o nosso movimento. Há o tempo biológico (Cronos) que representa o tempo quantitativo linear, medido pelas horas, dias, anos, e o Kairós que representa o tempo qualitativo, o momento oportuno, o tempo da oportunidade, que é uma experiência de tempo não linear e extremamente singular. Enquanto o Cronos nos coloca invariavelmente nas faixas etárias da vida, e nos rotula massivamente como jovens ou velhos, o Kairós nos sinaliza o tempo de viver intensamente, uma oportunidade única e significativa, esteja ela em que fase for, um instante de oportunidade que pode transformar um destino. Kairós exige reconhecimento e ação no momento certo. Essa observância por si sinaliza que massificar um velho e enquadrá-lo dentro de um grupo etário fixo, é condená-lo a um destino desumano e cruel. Portanto um dos tantos ensinamentos do filme é de que só o próprio velho poderá nos dizer o tempo de sua vontade, o tempo de suas pulsões e o tempo do seu cansaço. Afinal temos adolescentes mais cansados que seus avós. E o azul? Poderia representar o sonho de cada um, infinito de possibilidades. Permeando o azul das águas estão as trilhas de nossa memória, aquilo que fez sulcos e marcas.
A medicina e o cuidado em saúde de nossos tempos vêm basicamente as perdas do envelhecimento. E tentam a todo custo retardar o processo de “perdas” corporais e intelectuais. Estudiosos do processo de envelhecimento dividem os mais velhos em categorias. Há o “velho jovem” de sessenta e cinco a setenta e cinco anos, o “velho médio” até oitenta e cinco, e o “velho velho”, com idade acima de oitenta e cinco anos. Muitos autores reconhecem que com boa saúde, bons amigos, boa sorte e boa renda, os idosos podem aceitar melhor essas perdas e ter qualidade de vida. Bem, voltando a Tereza, vemos que ela só tinha boa saúde. De resto se assemelha a grande massa de idosos de países pouco desenvolvidos. São idosos de pouca “sorte”, são pobres e com pouco acesso a lazer e serviços. São com frequência vítimas de exploração familiar, comunitária e sofrem violência. Nesse sentido movimentos como o de Tereza são inusitados. Que poder é esse num corpo envelhecido?
Mas o que mais pode essa narrativa trazer ao movimento Slow Medicine? Talvez coloque uma tonalidade azulada no nosso tradicional caramujo sóbrio, respeitoso e justo. A contaminação pelo encantamento da secreção azul, nos remete ao se permitir devanear, se encantar com a última fase da vida, que não tem data certa para começar e cujo fim temos certeza, mas não um marco temporal. Não há mais tempo a perder, o viver tem que acontecer agora, e esse pensamento pode abrir um espaço para uma liberdade nunca cogitada, sem culpa, um arrebatamento, uma desobediência que permite que a vida aconteça. É preciso desobedecer para não cair no lugar comum, no vale, ou na vala de onde só os corajosos saem e sobrevivem.
Essa metáfora se conecta com a protagonista e sua busca por uma última oportunidade de experimentar a vida plenamente, tocando no desejo de liberdade, esperança, recomeço e quiçá, realizar um sonho antigo de voar. Tereza voa, sobre as águas, mas voa, inundando seu desejo numa explosão atlântica. Como cuidadores e profissionais que lidam com o velho, não podemos barrar essa viagem. Todos que vivem a merecem.

Referências:
Música: Rosa dos Ventos de Chico Buarque com Maria Bethânia.
Lacerda, Rodrigo. O Fazedor de Velhos. Companhia das Letras. 2008.
Rosa, Guimarães. Conto “A Terceira Margem do Rio”. Primeiras Estórias. 1962.
Freud, Sigmund. Obras Completas vol 12. Introdução ao Narcisismo, ensaios de Metapsicologia e outros textos. [1914-1916]. Companhia das Letras. Viorst, Judith. Perdas Necessárias. Ed. Melhoramentos. 1988.

Carla Rosane Ouriques Couto

Médica de Família e Comunidade, Sanitarista e Pediatra. Especialista em Saúde do Trabalhador, Educação Médica, Gerenciamento de UBS, Terapia de Família e Casais e Psicanálise. Mestre em Psicologia Social. Em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Produtora de conteúdo: Cinema & Terapia. @carlarosanecouto. Aprendendo a ser velha.

Vera Anita Bifulcco

Psicóloga, psico-oncologista, Mestre em Ciências pela Unifesp-EPM. Psicóloga integrante do Ambulatório de Cuidados Paliativos da Unifesp. Co-organizadora dos livros: Câncer: uma visão multiprofissional e cuidados paliativos: um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais; Cuidados Paliativos – conversas sobre a vida e a morte na saúde. Membro participante do Movimento Slow Medicine Brasil. Coordenadora do Comitê de Cuidados Paliativos da SBPO.

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